Como tema de trabalho sobre a Arquelogia da Arte Multimédia optámos por elaborar uma reflexão sobre a pintura impressionista e analisar uma obra de Edgar Degas, Jockeys amateurs près d’une voiture, 1976-1887.
Considerando a apresentação feita por Ann Dumas, co-curadora da exposição Degas and the Ballet: Picturing Movement na Royal Academy of Arts de Londres [http://www.royalacademy.org.uk/exhibitions/degas/], em que a própria contextualiza o autor e a sua obra apontando características cruciais para a análise que pretendemos fazer, destacamos algo importantíssimo no seu discurso: a busca do registo do movimento na pintura de Degas.
Ao longo da sua obra, o autor, deveras influenciado pelo surgimento da fotografia e do cinema, procura inscrever nos seus quadros o movimento da figura humana, de que são exemplo os temas a que recorre – as telas das bailarinas que podem ser observadas na exposição mencionada. Contudo, acabámos por verificar que não é apenas neste tema que Degas procura tal efeito. Observámos que numa série de quadros com cenas de campo por ele realizadas, notam-se também inúmeras tentativas de captar o movimento de cavalos a correr.
Sendo assim, vimos surgir a hipótese de poder fazer uma breve análise do quadro escolhido, procurando nele características impressionistas relevantes para proceder numa primeira análise comparativa entre ele e a decomposição do movimento do cavalo feita por Eadweard Muybridge (1830-1904), Animal locomotion: An electro-photographic investigation of consecutive phase of animal movements, 1872-1885., como objecto de arte da sua contemporaneidade. A segunda comparação verificar-se-ia com uma fotografia de Martin Parr, fotógrafo do século XXI.
Deste modo, declaramos que o tópico principal do nosso trabalho é a exploração do desejo fotográfico na pintura impressionista, demonstrando com um quadro impressionista de finais do séc. XIX, que tem já o desejo fotográfico de representar um determinado momento e uma determinada visão – mostrar pura criação da memória do seu próprio autor.
Impressionismo e/em Degas
A raiz da arte moderna é o impressionismo, representando, por isso, o seu auge e o ponto final da pintura ilusionista – a perspectiva da renascença florentina, que dominara a arte europeia e os hábitos da percepção. O impressionismo marcou o início da arte subjectiva. Não era o «quê» do tema, mas sim o «como» da sua representação que decidiam o valor de uma pintura. «Pinto o que vejo e não aquilo que os outros se designam a ver», disse um dia o jovem Édouard Manet. Já não era a individualidade ou a originalidade do tema que contavam, mas sim a personalidade do artista que o criava, com o seu toque próprio, único e específico.
Na pintura, o impressionismo transmite uma certa visão de vida, que resulta de uma experiência espontânea de representações pictóricas. E, enquanto corrente pioneira da reflexão das excentricidades da percepção humana e a sua relatividade, assume-se como uma arte anti-ilusionista, que liberta a cor até ao ponto da sua própria autonomia. Os impressionistas fazem uma auto-análise da percepção ocular, onde a luz e a cor começam a emancipar-se da bidimensionalidade, enquanto forma e perspectiva. Numa ruptura com a pintura tradicional, a cor funciona por pequenas manchas e pontos observando-se, assim, a decomposição da cor. Assume-se, então, uma arte não-objectiva onde os objectos representados desaparecem através do véu atmosférico e tremeluzente das cores. A dimensão da representação óptica torna a cor mais expressiva, deixando de pertencer ao objecto, para fazer parte de um todo. A pintura é trazida à superfície da tela, que se configura agora com textura. A presença e exploração do meio – a tinta, a tela, a mão do pintor – na sua evidência tornam justa a afirmação da pintura impressionista como fazendo parte da arqueologia dos média.
Edgar Degas (1834-1917) é um dos artistas criadores do impressionismo, que nasce na classe média alta, e representa o tipo de parisiense educado, urbano e eloquente. Não é por acaso que nas suas pinturas são retratadas bailarinas, concertos de ópera e corridas de cavalos, como exemplos mais conhecidos. Degas absorve a tradição artística e outras influências – a gravura, o monótipo, a fotografia – reinterpretando-as de maneiras inovadoras no contexto pictórico. Os pontos de vista não são usuais e as assimetrias no enquadramento são um ponto consistente na sua obra. Ainda assim, note-se que Degas trabalha minuciosamente a composição das suas pinturas.
Jockeys amateurs près d’une voiture é uma pintura que faz parte da curadoria de Degas: Le champ de courses. Neste quadro, podemos observar, em primeiro lugar, a presença da tinta – do meio. Degas experimenta técnicas, e quebra as texturas da superfície da tela (contrasta pastel seco e pastel molhado, usa ainda guaches para suavizar os contornos das figuras).
Edgar Degas (1834-1917), Le champ de courses. Jockeys amateurs près d’une voiture, 1876 – 1887, óleo sobre tela, H. 0.652 x L. 0.812, © Museu de Orsay, Paris, França
Desfrutemos das manchas de cor, do relevo, e da própria textura da tinta na superfície da tela. Olhemos com atenção e alguma distância para a pintura. Aproximemo-nos agora, para que possamos reparar no borrão de tinta que se tornou a pintura. Esta é a mão do pintor a falar connosco. E agora, afastemo-nos do quadro, mais uma vez. Sim. Percebemos que os borrões de tinta não são borrões. São manchas que formam a composição pictórica num enquadramento um tanto assimétrico. No quadro está representado um tema: os jockeys nos seus cavalos, numa vasta paisagem. No espaço estão distribuídos e desalinhados em diferentes planos os cavalos, e uma parte de uma carroça, que foi propositadamente cortada, mesmo que representada num primeiro plano. Degas, durante a sua carreira, mantinha-se fiel às cenas de corridas de cavalos. E, na tela, manipula os cavalos e os jóqueis de forma a enquadrá-los no mesmo plano – reduzindo ou revertendo para os ajustar na tela. Os cavalos parecem querer mover-se. Assim, o pintor estaria interessado não na representação fiel do contexto de uma corrida de cavalos, mas sim na possibilidade de representar o movimento dos seus corpos. Degas anseia por registar o movimento, como se pudesse projectar um fora de campo. Note-se que a evidência do movimento está no centro do quadro: na perna levantada do cavalo, e na aproximação do cavalo vigoroso, no plano de fundo da representação. O rabo do cavalo ligado à perna levantada de outro cavalo, que “entra” na tela pelo lado esquerdo, como se tivesse vindo numa corrida, e quisesse agora o Jockey fazê-lo abrandar do movimento dessa corrida. A manipulação do enquadramento é desta feita, quando Degas coloca os cavalos unidos por um ângulo, e mesmo, quando num primeiro plano, a parte de uma carroça com as costas de uma senhora, e o perfil de um senhor, que nela tenta subir, é sugestionado um fora de campo.
Edgar Degas/Eadweard Myubridge/Martin Parr
É impossível olhar para este quadro de Degas e não pensar nos estudos de Muybridge sobre o movimento do cavalo. Apesar de Degas usar o movimento do cavalo como tema, ele contextualiza a experiência ciêntifica do movimento do fotógrafo inglês, num ambiente de lazer típico da época: as corridas de cavalo. É possivel observar este facto no cavalo situado no último plano, do lado esquerdo.
Eadweard Muybridge (1830-1904), Animal locomotion: An electro-photographic investigation of consecutive phases of animal movements, 1872-1885, Philadelphia: University of Pennsylvania
Esta decomposição do movimento revelou-se fundamental para Degas e para os novos estilos que sucederam o impressionismo, porque sem este conceito o cubismo e o futurismo não teriam surgido. O que nos leva a comparar o quadro de Degas com a fotografia do fotógrafo inglês Martin Parr são dois pontos distintos: o tema e o enquadramento.
Martin Parr é um fotógrafo documental que tem como objecto de estudo imagens da vida moderna. A fonte das suas imagens é sobretudo a classe média da Inglaterra rural em momentos de lazer, assim como Degas o faz, representando a classe média da sua época.
Degas, na época da invenção fotográfica pintou algo que este invento científico demorou a usar como técnica estilística. Numa era em que cada fotografia tinha um custo elevado, e onde cada momento era ensaiado na procura de uma imagem perfeita, Degas apresenta um ponto de vista muito parecido ao snapshot. O snapshot consiste em capturar a imagem num instante sem preocupações de enquadramento e de objectos ou sujeitos cortados, sugerindo desta maneira a noção de fora de campo.
Martin Parr, Last Resort: Photographs of New Brighton, 1983 – 1986, Chromogenic print, 20 x 24 in
Mónica Lemos, Anabela Ribeiro, Ivan Pereira