Do imaginário até qualquer representação pictórica, exteriorizada, as imagens desenvolvem um percurso mediado por intervenções de ordem estética (experiências e anseios do artista) e tecnológica (manuseio dos instrumentos de olhar, inscrever e perceber as obras), onde as relações estabelecidas entre essas dimensões não atuam em níveis necessariamente hierárquicos. Para além desse conceito que evoca o grego technè[1], é preciso admitir a pertinência de uma concepção distanciadora que retoma o termo “imagens técnicas” num sentido a considerar as intervenções dos dispositivos técnicos e de suas sucessivas intercalações mediadoras, como decisivas forças que sensibilizam os aspectos humanísticos da produção, ou que intensificam aquilo que Philippe Dubois intitula “dimensão maquínica” desses dispositivos, criando ambiguidades entre estética e técnica, além de colocar esta última como componente cada vez mais necessário à proliferação de modelos para constituição de imagens.
A supervalorização da tecnologia se reflete desde a época do Renascimento, quando o conhecimento científico se configurava em um valor imprescindível aos modelos de representação baseados no controle matemático do visível, impregnava de estima o verossímil e, portanto, partiam essas representações (utopicamente) de fora do indivíduo, numa visada a evitar sua subjetividade e os demais efeitos desviantes interiores. Dessa época, a maior contribuição seria a ilusão de profundidade do plano, desenvolvida pela perspectiva artificialis[2], que teve na câmara obscura seu objeto de síntese (esquema acima).
A objetividade da imagem obtida por esse dispositivo parecia inquestionável ao homem daquele período: afinal, era a própria realidade que se fazia projetar de forma invertida na parede da câmera oposta ao orifício por onde entrava a luz, enquanto o papel do artista consistia apenas em fixar essa imagem com pincel e tinta (MACHADO, 1997:226).
Demorou-se muito tempo até admitirmos e apreciarmos uma co-existência pacífica entre as representações realistas e as figurativas, e isso se deu por mérito basicamente das vanguardas modernistas e seus desdobramentos. Há, porém, uma controvérsia que instala, no campo da referida supervalorização dos dispositivos tecnológicos, questões sobre a disparidade entre uma ideologização futurista e retrocessos na concepção de novas formas de percepção e processamento. Há uma reivindicação de Doubois de que, aquilo que a tecnologia propicia enquanto potencial mimético, faz proliferar uma série de imagens cada vez mais distantes da pulsão artística que lhes dá vida. Imagens mais relacionadas ao que os olhos percebem objetivamente, porém muito longe de representarem o funcionamento do nosso conhecimento, dos mecanismos de armazenamento da memória, dos acionamentos perceptivos e sensoriais, enfim, imagens pouco representativas dos fantasmas e desejos do nosso cinematógrafo interior[3]. Três relações abordadas por Dubois nos ajudarão a expandir esse conceito: maquinismo-humanismo, semelhança-dessemelhança e materialidade-imaterialidade.
A relação maquinismo-humanismo traz claramente um relato histórico das “máquinas de imagens” do ponto de vista da inserção entre modelo (Real) e representação (simulacro) de dispositivos técnicos, máquinas de ordens diversas, que se interpõem entre Sujeito e obra, ressignificando levemente, em um primeiro momento, a artisticidade e a extensão humanista[4]. Enquanto a câmera obscura representava apenas um instrumento de organização do olhar (“máquina de primeira ordem”) que não inscrevia a imagem no suporte, e que portanto mantinha viva toda dimensão de humanismo artístico (quando o trabalho de realizar o desenho era concentrado integralmente nas mãos do artista), a invenção do daguerreótipo, no início do século XIX, marcou uma violenta ruptura, inserindo uma “máquina de segunda ordem” que estendeu a intervenção até a próxima etapa do processo, incluindo dentro de um mesmo dispositivo as configurações do olhar e a inscrição propriamente dita da imagem no substrato.
Adiante, vemos no cinematógrafo a “máquina de ordem três”, sem a qual não se pode visualizar as imagens produzidas para o cinema. O fenômeno da projeção, como já sabemos, é parte do mecanismo pelo qual nos deixamos sugestionar nessa modalidade e que por sua vez confere ao cinema uma dimensão psicológica (agenciamento) e outra ideológica (desejo de ilusão) que Dubois sobrepõe ao maquinismo, objetivando salvaguardar o cinema enquanto arte diferenciada das demais em questão, pelo poder que exerce no imaginário. Tratando-se aqui do modelo clássico de cinema narrativo, cujas teorias estruturalistas (semioticistas) levam em consideração uma matriz verbal hibridizada (junto à matriz sonora e à visual) na linguagem cinematográfica, visando estabelecer os alicerces deste cinema dito tradicional, cuja função principal é contar histórias e que por isso necessariamente adentra o âmbito do discurso[5].
O espectador sofrerá a maior transformação com o aparecimento da televisão (e sua imagem eletrônica), cuja extensão maquínica veio a se configurar pela transmissão. “Uma transmissão à distância, ao vivo e multiplicada. Ver, onde quer que haja receptores, o mesmo objeto ou acontecimento, na forma de imagem, em tempo real e estando sempre longe ou alhures” (DUBOIS, 2004:46). O vídeo é o recurso baseado na imagem eletrônica (contemporâneo à televisão), que servirá de suporte para outras linguagens transgressoras. Sua imagem maleável permite uma gama muito rica de manipulações e recursos para criação de efeitos de anamorfose, e que vai lhes conferir, quando este ensaia diálogos com a arte, um elemento de subversão à tendência da representatividade mimética do visível. A respeito das experiências artísticas com vídeo, Arlindo Machado expõe:
A videoarte será a primeira forma de expressão, no universo das imagens técnicas, a produzir uma iconografia resolutamente contemporânea e a lograr uma reconciliação das imagens técnicas com a produção estética do nosso tempo, ou pelo menos a primeira a fazê-lo de uma forma programática, transformando essa busca na sua própria razão de ser, e não como uma investigação marginal, conduzida na contramão das formas dominantes (MACHADO, 1997:231).
A característica de indício das imagens, ou seja, sua relação de contiguidade com uma realidade pré-existente e análoga, veio desaparecer com a imagem de síntese, aquela produzida por computadores. Esse tipo de “imagem” não prescinde de dispositivos técnicos que se interpõe entre ela e um suposto objeto palpável a ser representado. Tal objeto não existe para fora dos limites da “máquina de ordem cinco (que retoma as outras no seu ponto de origem), não de reprodução, mas de concepção” (DUBOIS, 2004:47), o que também desestabiliza a própria ideia de representação. Existe apenas um software, um programador que organiza possibilidades e o espectador que as aciona interativamente. O que brota da tela é uma simulação, uma entidade desmaterializada de possibilidades ilimitadas. Este mito também se estende às imagens analógicas quando estas são transcodificadas para suporte digital, uma vez que adquirem caráter de representação numérica.
Noutro momento, Dubois resgata a teoria de “dupla hélice” de Raymond Bellour, para explicar, através da relação semelhança-dessemelhança, que, ao lado do movimento de potencialização mimética que os sistemas de imagens conheceram gradativamente com a invenção dos dispositivos técnicos, caminha em sentido contrário uma tendência de desmistificação dessa ode ao realismo das representações. Assim, alguns cruzamentos são possíveis: ao realismo da imagem fotográfica (que lhe conferiu a qualidade de registro) opunham-se as anamorfoses operadas com o controle do obturador; à mimese do cinema enquanto imagem-movimento tal qual se manifestava o real perceptivo, o cinema de montagem soviético (para citar apenas um dos variados exemplos históricos); e à qualidade de “tempo real” da televisão, o trabalho contundente dos videastas.
Esta noção de uma dosagem irremediável em algum nível entre semelhança e dessemelhança, colocada por Dubois, nos interessa particularmente porque assinala a constatação de que a tecnologia parece oferecer apenas uma lente de aumento para as possibilidades criativas eclipsadas (em cada momento histórico de desenvolvimento das técnicas) no continuum de opções que se afastam ou se aproximam de formas mais ou menos miméticas, terminando por inscrever esta dimensão da imagem num questionamento de ordem estética, até certo ponto livre de supostos paradigmas condicionantes de natureza tecnológica. Assim sendo, é compreensível que todo o cinema, seja ele narrativo ou não, no momento em que incorpora as tecnologias digitais em sua produção, por exemplo, tende a manter a diversidade estética de suas variadas manifestações, como sempre foi. Apenas, cada necessidade formal tem suas possibilidades ampliadas por um acréscimo progressivo de recursos, inerentes a uma produção contemporânea excessiva, plural, caótica e hibridizada, indiferente a qualquer tendência estética.
Por fim, a dialética materialidade-imaterialidade se encarrega de discutir a ideia de que o aumento do potencial realista prometido pelos novos dispositivos leva a uma dissolução da dimensão objetal das imagens. Na pintura, assim como na fotografia, há um suporte físico onde a imagem é inscrita (ainda que se aponte nesta última um achatamento, um disfarce nos indícios da inscrição) e que pode ser manuseado. No cinema, a imagem percebida já apresenta teor imaterial (no efeito de projeção dos fotogramas em movimento e de reflexão da imagem em uma tela), muito embora se possa tocar a película. Já a imagem videográfica, apesar do aspecto parecido à cinematográfica, apresenta impulsos elétricos, codificados ou não (nas fitas de vídeo) em lugar dos fotogramas, e o meio digital, sínteses numéricas representativas ao invés de imagens de fato.
É notório que, em pouquíssimo tempo (algo em torno de dois séculos — a contar da invenção técnica da fotografia) muito se acrescentou às técnicas de reprodução do visível. O que se observou, no entanto, pelo menos no Ocidente, foi uma multiplicação de padrões hegemônicos que pouco se esforçaram para superar as imposições renascentistas de influência cientificista — ainda que não possamos ignorar o valor das vanguardas modernas do início do século XX. Se houve um núcleo artístico que percebeu um determinado tipo de imagem, imaterial, a tempo de tirar proveito de sua linguagem potencialmente híbrida, explorando-a com insistência questionadora, foi justamente aquele que levou um “certo cinema” para as galerias de arte. Analisar tal contexto nos coloca diante de embates interpretativos nos níveis mais profundos acerca da produção artística, além de nos preparar para uma nova compreensão do nosso papel como espectador.
[1] Ver em: DUBOIS, P. Cinema, Vídeo, Godard. Brasil: Cosac Naify, 2009, p. 31-33.
[2] Código aplicado na correção de imagens geradas a partir de dispositivos como a tavoletta de Brunelleschi, cuja função básica era sugerir uma ilusão de profundidade sobre a tela plana (MACHADO, 1997:225).
[3] Como Arlindo Machado intitula nossas “instâncias produtoras de imagens” por intermédio da imaginação.
[4] Benjamin já se preocupava com o que ele determinou uma “perda da aura” da obra de arte, que tinha sua autenticidade e seu valor de testemunho histórico diluídos nas reproduções técnicas. Ver: BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
[5] Ver as conclusões de Carlos Gerbase, a partir da teoria das três matrizes da linguagem e pensamento de Lúcia Santaella, de como o uso das novas tecnologias digitais na produção contemporânea de filmes ao estilo tradicional aparentemente não tem modificado de maneira significativa a referida linguagem cinematográfica e suas convenções, em: GERBASE, Carlos. Impacto das tecnologias digitais na narrativa cinematográfica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. Ver também como as teorias estruturalistas francesas do cinema estão entrando em declínio, dando lugar a abordagens mais cognitivas, multiculturalistas, concentradas nos contextos de recepção, em: MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007.]
Indicações de leitura:
– BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
– DUBOIS, Phillipe. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
– GERBASE, Carlos. Impacto das tecnologias digitais na narrativa
cinematográfica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
– MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: Modos de enunciação no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007.
– MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
Bruno Amorim
brunoamorimp@gmail.com