Etiquetas

, , , ,

LEVAR TUDO À LETRA
Experimentar com o meio

Tap, Tap, Tap, Tap, Tap. Parando só de quando a quando para ajeitar thick fringes, daquelas que se armavam com muita laca, a classe feminina de técnica comercial do St. Joseph’s College faz original proveito da sua máquina de escrever. Sim, que certa manhã não caíram as alunas da prestigiada instituição britânica na mesmice cautelosa da transcrição de manuscritos (que calhava não raras vezes os dedos donzelos serem traídos pela alta velocidade e o tipo imprimir o caractere indevido!) – agora, em aleatória maravilha, elas seriam eficientes retratistas!
E quem diria que, quase setenta anos volvidos, Cathy Dalton havia de encontrar, perdida no seu sótão, entre tantos outros artefactos, essa memória experimental que em dezembro de 1955, vergando grafia à criação artística, faria expirar a semântica, a sintaxe, a morfologia, a pragmática, a fonética e até a fonologia… Ora, é que servindo-se da linguagem como mero “ato performativo”[1], o achado de baú vem confirmar senão a ideia magna de “A Morte do Autor”(1968), pérola da filosofia moderna na qual Roland Barthes, sustentado nos subsídios da crítica literária, defende a importância da matéria escrita sobre a intencionalidade do sujeito que a produz, votando o leitor ao novo soberano da literata, ele, “o homem sem história, sem biografia, sem psicologia, que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito”[2]. Quer isto dizer, ainda que não negando a existência de uma autoria- veja-se, no caso, a dona da máquina como o “homem físico” barthiniano-, a verdade é que este inusitado aproveitamento da datilografia recusará, no entanto, a presença do agente criador como a “chave” que decifra o signo linguístico, ao espetador antes outorgada a responsabilidade de saber querer tomar literais os grafemas, percebê-los despojados da sua função primária, ao jaez de puro suporte criativo. Ou, por outra, produto do sobe e desce fortuito de teclas metálicas, a sortida reunião alfabética de Dalton e das suas companheiras, totalmente alheada da comunicação verbal, nada mais pretende que formar blocos das várias gamas que tem o cinza, quando ao longe vista tornada sagração a preto e branco do rosto de Isabel II, por ora recém-coroada rainha…

A quem queira apreciar a relíquia da antiga aprendiz de St.Joseph’s à luz do “O que quis o autor dizer nas suas linhas?”, lhe digo, portanto, que evite gastar o seu tempo, nas boas vivas à miopia, com três neurónios do hemisfério esquerdo [3] quase em combustão. Pois terá, com licença, que me desculpar o mais popular, mas, citando pela última vez o francês, “uma vez o autor afastado, a pretensão de «decifrar» um texto tornou-se já inútil”[4], e, dessarte, sensato talvez aqui seja aquele da taxa nunca arreganhada, que leva tudo, tudo, mesmo tudo, à letra.

Em cima, Cathy Dalton mostra o retrato que terá feito em contexto de sala de aula, recorrendo exclusivamente à sua máquina de escrever. Em baixo, por sua vez, um grande plano dessa obra que tenta representar a rainha Isabel II, aqui poeticamente emoldurada pelas mãos engelhadas da sua já octogenária autora. (Ambas a fotografias são da câmara de Warren Buckland e formam a secção imagética de “Haw’s Bay Today: Queen Elizabeth death: Hastings woman plans to frame portrait of monarch she created with typewriter”, artigo do jornal eletrónico New Zealand Herald, disponível na íntegra em https://www.nzherald.co.nz/hawkes-bay-today/news/queen-elizabeth-death-hastings-woman-plans-to-frame-portrait-of-monarch-she-created-with-typewriter/RA6CCKMKYBW2FGC45I7PNG5AKU/ (a saber, consultado no dia 28 de outubro de 2022).)

[1] C’est que (ou il s’ensuit que) écrire ne peut plus designer une opération d’enregistrement, de constatation, de représentation, de “peinture” (comme disaient les Classiques), mais bien ce que les linguistes, à la suite de la philosophie orxfordienne, appellent un performatif, forme verbale rare (exclusivement donnée a`la primière personne et au présent), dans laquelle l’énonciation n’a d’autre contenu (d’autre énoncé) que l’acte par lequel elle se profere. (BARTHES, 1968, p.64.l.18-24.)

[2] “[…] le lecteur est un homme sans histoire, sans biographie, sans psychologie; il est seulement c’est quelqu’un qui tient rassemblées dans un même champ toutes les traces dont est constitué l’écrit.” (BARTHES, 1968, p.67. l.1-3.)

[3] Alusão ao hemisfério esquerdo do cérebro humano, do qual depende predominantemente a linguagem na maioria dos indivíduos. Com efeito, estudos recentes apontarão para que, em cerca de 96% da população mundial, dele dependam todas as funções ligadas à gramática, ao vocabulário e à construção de sistemas fonológicos. (GJERLOW, K. OBLER, L.K, 2002, p.23, l.8-10.)

[4]”L’Auteur une fois éloigné, la prétention de «déchiffrer» devient tout à fait inutile.”.(BARTHES, 1968, p.65, l.28-30.)

Bibliografia

BARTHES, R. (1968). La mort de l’auteur, Manteia, no. 5: 12-16. (O documento terá sido disponibilizado pela docente da unidade curricular na plataforma UCStudent> Arte e Multimédia > Materiais>Tópico 2. Experimentar com o Meio> 1_barthes_morte_autor_en_fr.pdf. )

GJERLOW, K. OBLER, L.K (2002). A Linguagem e o Cérebro. Instituto Piaget: Lisboa.

Sitografia

BUCKLAND, W. (2022, 12 de setembro, 01:55 AM). Hawke’s Bay Today: Queen Elizabeth death: Hastings woman plans to frame portrait of monarch she created with typewriter https://www.nzherald.co.nz/hawkes-bay-today/news/queen-elizabeth-death-hastings-woman-plans-to-frame-portrait-of-monarch-she-created-with-typewriter/RA6CCKMKYBW2FGC45I7PNG5AKU/