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DEUS SALVE A RAINHA!
O Conceito de Média
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Téc.ni.ca (ˈtɛk.ni.kɐ). Ei-lo, o sintagma nominal que me assolava na passada segunda-feira, eu, que, depois de uma manhã pasmada defronte da Isabelina funerária protocolar, vinha de desmascarar as subtilezas de uma câmara. Que, a bem ver, talvez se governasse não só com coroa, mas também com objetiva.
Pois datada do mais importante enterro do século, a primeira aula de “Arte e Multimédia” debruçaria a minha consideração sobre o dispositivo fílmico, concluindo, não mais amestrada espetadora, para o ardiloso pacto que se firmara, então nesse 19 de setembro, entre reprodutibilidade técnica e monarquia. Com efeito, pela primeira vez transmitidas em direto, as cerimónias fúnebres em honra de Isabel II ditar-se-iam mostra da instrumentalização das “technê” pelo poder, quiséssemo-las materialização por excelência da veracidade de certa deixa, aquela que diz “la prise de vue et surtout l’enregistrement d’un film offrir une sorte de spectacle telle qu’on n’en avait jamais vue auparavant”[2] (BENJAMIN, 1936, Cap. XIV, l.1-2). É que se os obséquios de Isabel I ficariam gravados na raridade privada de umas ilustrações, nos de Vitória a anestesia de massas tomava já fôlego com a fotografia (e nisto, imagine-se o cadáver real passeando a sépia pelas boulevards, encaixado nos medalhões de peito das romanescas burguesinhas!), neste 2022 a mortalha régia, finalmente, descendo à cova no par e passo do streaming, apanágio de fulano, de beltrano e até de sicrano que, como eu, no seu rebaixamentozinho plebeu, madrugaram para verem Sua Majestade conhecer epitáfio, sem escape da mórbida euritmia!
A arma maior do trono, decifrasse-se-a, enfim, na mercê filmada do medium. Afinal, diz a retrospetiva histórica ser só ela a capaz de catapultar milhões para a Real Teatrada da Morte, fazendo-os sentirem-se de tal modo convidados de Westminster que, não fosse a fronteira de vidro, teriam curvado vénia ao caixão soberano, carpindo os pêsames aromáticos que sempre tem a urze em raminhos…

Súbditos ma non troppo serão os que lerem “A Obra de Arte na sua Era da Reprodutibilidade Técnica” nas entrelinhas Benjaminianas. Palavra, que, cá para nós, desde tal empreitada, perdoem-me os santinhos monárquicos, mas ando rogando que Deus salve primeiro o Povo… e -vá, seja- depois a Rainha!

Primeiro registo visual do funeral de um monarca inglês, a saber o de Isabel I do Reino Unido (c.1603, atribuído a William Camden). Fonte: Repositório digital da British Library (https://www.bl.uk/collection-items/drawings-of-the-funeral-procession-of-elizabeth-i).
Fotografia do cortejo fúnebre em honra da Rainha Vitória do Reino Unido (1901, autor desconhecido). Fonte: ResearcheGate (https://www.researchgate.net/figure/Queen-Victorias-Funeral-1901_fig5_312918044).
Captura de ecrã da transmissão televisiva do funeral da Rainha Isabel II do Reino Unido (19 de setemmbro de 2022, “The Funeral of Queen Elizabeth II- BBC Special Broadcast”). Fonte: Youtube, Adhi Pratama Channel, “2022- BBC- The Funeral of Queen Elizabeth II- Final Montage”(https://www.youtube.com/watch?v=aO8VfmmyJpA&ab_channel=AdhiPratama).

[1] De notar será que para a escrita deste pequeno ensaio terei usado como referência “L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée”, tradução francesa do original Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit” de Walter Benjamin, publicada no ano de 1936. Na verdade, achei por bem- dentro da lógica politizada que encerra a minha reflexão- antes de querer entender o pensamento do filósofo judeu alemão na sua forma final (falo da segunda e da terceira versões do texto fundamental), estudá-lo na sua forma censurada, lexicalmente mais primitiva. Interessante numa leitura comparatista foi, por exemplo, perceber as propriedades semânticas do termo “técnica”, até 1955, data da segunda publicação da obra, preterido por “mecânica”.

[2] Se em português traduzido, “a tomada de vistas e sobretudo as filmagens oferecem um tipo de espetáculo como nunca antes visto”.

Bibliografia

BENJAMIN, W. (1936), L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction mécanisée (trad. P. Klossowski). Disponível em https://editions-ismael.com/wp-content/uploads/2016/07/1936-W.-Benjamin-Loeuvre-dart-%C3%A0-l%C3%A9poque-de-sa-reproduction-m%C3%A9canis%C3%A9e-trad.-P.-Klossowski.pdf.