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A ideia de autoria como autoridade máxima no domínio criativo e interpretativo de uma obra tem suas origens no séc XIX. O autor, como figura pública, ganha notoriedade e ares de culto pelos admiradores de seus livros. Entretanto, podemos questionar se esta ideia ainda se mantém intacta nos dias atuais. Será que a popularização da internet e, consequentemente, como dizia Marshall McLuhan, a criação da uma Aldeia Global, não interferem na nossa perspectiva da relação autor cânon-leitor passivo?

De certo, para responder essa questão, devemos olhar para antes do século XIX  e do movimento romântico. Ainda na Era Tribal, assim categorizada por McLuhan, as narrativas eram partilhadas de forma oral. Ouviam-se histórias sobre heróis e deuses, e para que tais enredos se propagassem era necessário que, posteriormente, os ouvintes se tornassem narradores. Mas, como já diz o ditado, quem conta um conto, aumenta um ponto, e assim surgem divergências entre as versões dos mitos. Como o nascimento de Afrodite, que hora surge da espuma do mar a partir dos restos de Urano, ora é filha de Cronos e irmã de Zeus, ou o papel Medeia nas conquistas dos Argonautas, podendo ser apenas a amada de Jasão ou a feiticeira que mata o dragão guardião do Velo de Ouro. As versões, como podemos supor, são diferentes devido ao interesse pessoal do narrador, por este saber qual versão agradará mais suas plateia, ou ainda em um exercício imaginativo de “como seria se…?”

Na passagem para as Eras da Escrita e da Imprensa, essa certa liberdade criativa perdeu espaço perante a autoridade da verdade escrita, e as obras passaram a ser imutáveis. Já a partir do final do século XX e nas primeiras décadas do século XXI, passamos para a Era Eletrónica ou a Aldeia Global. A facilidade em se comunicar instantaneamente com pessoas de qualquer ponto do planeta, devolveu a possibilidade de voz para a maioria, que apenas escutava ou no caso da literatura, lia. E surge assim, nos anos 1990, as chamadas fanfics. Estas são histórias criadas por fãs de uma obra já existe, que reimaginam a trama, mudando finais, pano de fundo, relações entre as personagens e até juntando peças de outras histórias e montando uma nova só, os famosos crossover

Os autores, diante desse movimento, dividem-se. J.K. Rowling, a polêmica autora de Harry Potter, vê as fanfics com uma homenagem a sua obra. Já Anne Rice, criadora de Interview with the Vampire, desaprova enfaticamente a prática. Porém, inegável é o sucesso dessas histórias de fã para fã. Um dos casos mais interessantes é a famosa trilogia Fifty Shades of Grey, de E.L. James, originalmente uma fanfic da saga Twilight, de Stephenie Meyer e que conquistou milhares de leitores mundo a fora, sendo adaptada posteriormente para o grande ecrã. Diferentemente dos mitos da Era Tribal, nos quais a essência das narrativas mantinha-se a mesma e apenas detalhes eram alterados, nas fanfics, tudo é possível, até mesmo a descaracterização quase total da obra referência, como no caso citado. 

Fifty Shades of Grey, a fanfic de Twilight que virou um sucesso mundial.

A existência e popularidade desses textos, possibilitada pelas novas tecnologias retira, em parte, do autor o patria potestas sob a obra, mas esse se mantém admirado e respeitado pelos leitores, na maioria dos casos. O que se conclui é que o surgimento das fanfics é a apenas a forma que encontramos nos tempos de contar as nossas versões das histórias e de exercitar o dom da imaginação, inato a todos nós.