Numa sociedade hiperconectada, os ‘softwares’ mandam e até a voz tem solidez. Mas o que é que o tribalismo tem que ver com tudo isto?
Uns creem que as sociedades humanas nascem porque falamos, outros acreditam no contrário. De qualquer das formas, fato é que falamos, ou seja, usamos sons para representar conceitos, muitas vezes abstratos. É desta abstração, ou desta capacidade de ver e descrever o invisível, que surgem as culturas orais que por muito dominaram – e ainda dominam – a história humana.

Enquanto a língua surge, em estimativas mais conservadoras, 50 mil anos atrás, a escrita só aparece mais tarde – no Oriente Médio e no Egito –, por volta de 3500 AEC. Entretanto a popularização da literacia é um evento extremamente recente, tendo começado pouco após o início da contemporaneidade. Fato é que a oralidade se mantém como o maior distintivo da espécie humana.

Esta cultura oral é, segundo McLuhan, inerentemente tribal, tribalismo esse que findou com a imprensa, mas que se reavivaria com o advento dos novos media. De certa forma, o professor canadense tinha razão, uma vez que, mais tarde e com a Internet, as pessoas estariam hiperconectadas numa segunda realidade. Hoje, falamos, escrevemos e lemos muito mais que um monge na Idade Média.

Desde o surgimento do rádio e da radiodifusão, a literatura e a dramaturgia se expandiram e adentraram estes meios num processo de transmediação: surgem gêneros como a radionovela, que já vinha, principalmente no espaço lusófono e românico, se perpetuando nos jornais na forma de romances de folhetim, muitos dos quais depois republicados na íntegra como livros.

Mas não só apenas o “folhetim” passa por esse processo. A poesia também foi profundamente alterada a partir do contato com os meios analógicos. No caso americano, como analisou a professora Andrea Brady, a música afro-americana migrou dos campos de algodão às rádios, apesar de este processo não ter sido reconhecido por muitos etnógrafos à época. Este é exemplo patente de como a tradição oral se pôde manter viva e pulsante com o advento da radiodifusão. Outrossim, uma das principais características do áudio é o rompimento com a própria natureza da fala, que é fugaz e efêmera.

Por óbvio, a digitalização dos meios analógicos e o advento dos novos media permitiram um alargamento de tais processos. Gêneros remodelaram-se e transitaram das rádios para o digital. Nasce um novo gênero: o ‘podcast’, uma transmediação dos tradicionais programas de rádio, alterados conforme as especificidades do medium, a Internet. O termo, suponho, tem origem na noção de uma emissão (do inglês ‘cast’) unitária, contida em si, encapsulada (do inglês ‘pod’).

O digital permitiu um controle ainda maior na produção de áudio. Os ‘softwares’ são usados transversalmente, da pré-produção à emissão, e têm cada vez mais impacto. A natureza efêmera da voz, como referido, desaparece, e esta passa a ter uma materialidade cada vez mais tangível. Alterar níveis, equalizar os sons (expressões muitas vezes alheias às massas) se tornam factíveis com maior facilidade e rapidez. Acrescentam-se faixas a mais, e ‘voilà’ uma criação intelectual nova.

Passam os séculos, mudam os processos, mas a criatividade ainda reina invicta. Pouco importa se mediada, digitalizada ou “softwarizada”, a produção cultural ainda se mantém como um dos grandes louros da Humanidade.

Gabriel Rezende