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cinema, dadaísmo, hipermediacia, imersão, integração, remediação, sincronização musical, surrealismo
Entr’Acte é um filme francês de 1924 dirigido por René Clair e com música de Eric Satie. Surge no contexto das vanguardas do início do século XX, apresentando um misto de traços dadaístas e surrealistas.
O dadaísmo pautou-se pela agramaticalidade, por efeitos de sobreposição e simultaneidade, e por uma lógica fragmentária. Já o surrealismo recusou as representações realistas, privilegiando claramente o inconsciente (pulsões, desejos reprimidos pela consciência) como meio de libertação da criação artística.
As criações, obras de arte, são imaginárias satisfações de desejos inconscientes, do mesmo modo que os sonhos, e, tanto como eles, são, no fundo, compromissos, dado que se vêem forçadas a evitar um conflito aberto com as forças de repressão. Todavia, diferem dos conteúdos narcisistas, associais, dos sonhos, na medida em que são destinadas a despertar o interesse noutras pessoas e são capazes de evocar e satisfazer os mesmos desejos que nelas se encontram inconscientes. (…) Aquilo que a psicanálise foi capaz de fazer consistiu em captar as relações entre as impressões da vida do artista, as suas experiências causais e as suas obras e, a partir delas, reconstruir a sua constituição e os impulsos que se movem dentro dele.
– Sigmund Freud, in O Pensamento Vivo de Freud
O filme está incorporado no ballet Relâche de Picabia e Satie, tendo sido apresentado entre o primeiro e o segundo atos. Está dividido em duas sequências:
- A primeira dura cerca de noventa segundos e consiste nos dois criadores a acender um canhão no topo de um edifício. Esta sequência apresenta traços surrealistas: apesar de serem filmados locais públicos, insere-se neles um conjunto de ações que causam estranheza porque, à partida, nunca aconteceriam numa situação quotidiana. Um canhão desloca-se “sozinho” no telhado do prédio, através da técnica frame rate, que permite simular o movimento das pálpebras a pestanejar.
- A segunda sequência apresenta traços dadaístas, sendo detentora de extrema agramaticalidade: a existência de uma cena ligada ao ballet, combinada com a posterior recriação caricatural de um funeral, é um exemplo que demonstra a aleatoriedade que o filme denota. Neste sentido, poderíamos associar a ele pressupostos ligados à lógica da base de dados: não há uma linearidade narrativa, nem uma organização hierárquica dos elementos, sendo que estes poderiam ser recombinados.
O facto de Entr’Acte ter sido produzido para preencher o intervalo de um espetáculo de ballet, e de apresentar, ele próprio, uma cena ligada a esta temática, pode ser considerado uma forma de remediação da dança pelo cinema. Apesar do seu caráter impactante, o filme não foi concebido para criar nos espectadores um efeito imersivo. Esperava-se que, durante o intervalo entre os dois atos de Relâche, o público dispersasse a sua atenção, adotando uma postura dialogante. Contudo, moldados pelos códigos comportamentais dos espetáculos de música erudita, os espectadores permaneceram em silêncio, observando atentamente a projeção.
Entr’Acte apresentou formas de integração dos materiais, dos meios e das artes. Os seus autores exploraram várias técnicas de construção fílmica, como a filmagem das imagens em posições oblíquas ou invertidas , o recurso ao slow e ao fast motion, a sobreposição de película (forma de remediação do olhar humano), entre outras. O trabalho sobre os materiais privilegiou as noções de textura, distorção da forma, e movimento.
Existe, também, uma clara integração de formas de arte pertencentes ao regime simbólico (música, dança, performance) e ao regime automático (cinema, fotografia, fonografia). Um dos exemplos que não se pode ignorar é que, apesar de se inserir no contexto do cinema mudo, Entr’Acte foi um dos primeiros filmes em que houve a criação de música para a sincronização fílmica. Satie dividiu a sua composição em dez partes com extensas melodias repetidas que permitiram uma sincronização música – atos (e não música – movimentos/ação), por vezes coincidindo com a mudança de película.
Entr’Acte não ficou indiferente ao público, tendo sido alvo de diversas opiniões. Na sua descrição, foram usados termos como “hilariante” e “cartoonizado”. Há, ainda, a referência à existência recorrente de símbolos freudianos, destacando-se objetos que remetem para elementos fálicos (canhão, pistola, …), que representam o desejo sexual reprimido pela consciência humana.
A rutura com a expectativa de uma narrativa linear possibilita a construção de percursos alternativos (semelhante ao que acontece quando navegamos na Internet). Pela sua diversidade material e técnica, Entr’Acte foi classificado como uma forma de “pure cinema”, privilegiando a imagem e o movimento como geradores essenciais de um filme. O fascínio pelas técnicas cinematográficas, aliado ao questionamento da estética realista, faz com que predominem formas de hipermediacia no filme.
Neste sentido, coloca-se-nos a seguinte questão: poderá Entr’Acte corresponder a uma forma de obra de arte total?
– Joana Maia
– Filipa Saraiva
– Vanessa Gonçalves
Referências bibliográficas:
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